Avó Maria.



Um ano.
Faz hoje um ano desde a última vez em que te vi. Um dia de vida, um ano de saudades.

Estavas deitada, com ar sereno, indiferente a toda a parafernália de tubos que te rodeava e cruzava o corpo. Os teus cabelos brancos, impecavelmente penteados, estavam estendidos inertes, numa almofada de um branco imaculado, e a tua pele brilhava, munida de uma suavidade que só vem com a idade. Tinhas os olhos fechados, mas, ainda assim, não me coibi de te falar, certo de que me ouvias.

Cantei-te todas as palavras que me afloraram à boca, e fiz-te perguntas que ficaram a pairar no ar, sem qualquer resposta. Falei sem reservas, porque me ouvias. À tua volta contei uma coleção de caras graves e tristes que me aumentaram a angústia. Solucei para dentro, não desfazendo a pose e não me permitindo chorar. Fiz-te festinhas e dei-te um beijo na testa antes de sair. Percorri aqueles corredores longos e frios sem a certeza de te ver outra vez, mas sempre com a esperança de tal ser possível.

Soube, umas horas depois, que o não faria. O meu coração pingou. Lágrimas d’alma, a rodos. Senti um vazio frio que me tirou o chão e me fez sentir garoto outra vez.

Não estou certo de ter compreendido logo o que se estava a passar. Talvez ainda hoje não o compreenda.

E, hoje, um ano depois, não é sequer assim que me lembro de ti. Não é naquela cama de hospital que te relembro. Não é de olhos fechados que te vejo. Quando chegas, chegas sempre a sorrir, olho brilhante e palavras afiadas na ponta da língua. Oh! E o quanto adoras tu falar! Acho que, mais do que isso, adoras ter quem te oiça e te perceba o dialecto. É sinal de que não estás só. E tu és pessoa de pessoas, pessoa de gentes. Não cresceste sozinha e não nos viste crescer sem ninguém.

Quando chego, de casaco ainda posto, palmilho sempre o corredor para o meu quarto e a meio caminho, à porta do teu, paro tão só para ouvir um “txigaste?”, tão típico da tua terra. É então que abro um sorriso e respondo “olá Avó”.

Sei, de antemão, que vais refilar com a minha barba, que está grande, que tenho de a fazer, que fico mais bonito de cara lavada, mas também sei que tal discurso acabará sempre com uma apaziguada declaração tua, certa de que sou um bom garoto. E eu lá saio com a barba por fazer, mas com o coração feito de vaidade. 

Pedes-me água quente, porque isso, estás convencida, lava e cura todas as maleitas do mundo. E eu faço-te a vontade, porque quero acreditar contigo. Olhas pela janela, tua fiel companheira dos dias, e teces um comentário acerca de alguém que vês a passar. E é perdida nesses pensamentos que te deixo, seguindo em frente para o meu próprio mundo, aquele de que faço o meu quarto.

Quando me lembro de ti, lembro-me de te ver na cozinha, sentada, televisão ligada, a cortar feijão, ou a descascar batatas para a sopa. Foste sempre incansável, verdadeira dona da casa, esse barco que comandavas sem qualquer esforço ou sequer queixa. Assim o levavas a bom porto, porque o sabias o teu fado. E assim vivias contente, ciente de ter criado uma família inteira nesse convés de vida que te permitiu crescer e, a nós, crescer contigo. E mesmo em dias maus, quando eu e o meu irmão te arreliávamos o juízo, encontravas dentro de ti a paciência para nos amar. E foi nesse amor genuíno e altruísta que crescemos, sempre habituados a ter-te por perto. Como se essa proximidade fosse certa e sinal de que aqui estarias sempre.

Relembrar-te é fácil, difícil é a saudade que se instala num sopro quente e que invade o coração que ainda bate.

Dias há, em que palmilho aquele mesmo corredor, e ainda paro à porta do teu quarto. Como se te fosse lá encontrar, sentada à janela a olhar o mundo, caneca de água quente ao lado. E então, de coração quente, sorrio baixinho.

«Txiguei Avó.»





* Para o Pedro, para que se lembre sempre de que o Amor continua constantemente a "txigar". E é nesse amor que terá sempre a Avó Maria.


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