O desfado do acordar.




Hoje acordei zonza, levantei-me de olhos fechados, ainda naquele limbo que nos prende entre a vida e o sonho. Acordei sem saber se o que sonhava era de ontem, ou de hoje; sem saber distinguir a realidade do imaginado e o fado do desfado.
E foi nesse acordar ansioso que ouvi a Ana Moura a cantar, que amor afoito é feito de anseios e os meus eram tão só de te saber bem.
Dizem na televisão que esta noite choveu, e que hoje a chuva ainda vai cair, mas eu que ainda tenho ramelas nos olhos, acredito que daqui até ao verão é um instantinho, menos do que aquele que demora alguém a poder dizer que se despiu a saudade. Que não se despe, sei eu bem. Mudam-se-lhe as roupas, adaptando-a às estações. Por vezes o acerto corre de feição e a camuflagem é perfeita, nem se dá por ela. Noutras, como hoje, o frio ou o calor denunciam-na. Claramente, a case of you. Vá-se lá perceber da vida, ou de que ela quer. Já te disse que o importante, dizem, é como a levamos, à vida, como superamos cada desafio e dificuldade com que se atreve e como aceitamos cada bênção que nos oferece. E tu gostavas de mim, quando me ouvias falar. Oh! E falava tanto! A minha descrença e timidez nunca atingiram as palavras; sempre acreditei nas palavras. Nas minhas, nas tuas, nas da vida. As palavras querem-se sãs, revestidas da ingenuidade do momento e livres de quaisquer patetices ortográficas que inventem. Havemos de acordar um dia e descobrir que nem tudo foi real, apenas realmente imaginado. A magia desse acordar será então cantado p’la fadista, aquela que vive nas esquinas de Alfama com o coração na voz e as mãos na anca. Eu gostava de ser fadista, mas o rouxinol não me deixou. Fiz de tudo mas falhei, e se não me faltam as palavras escritas, que nunca me deixam ficar mal, que falta fazem as cantadas. Se acaso um anjo viesse, poderia pedir-lhe ao ouvido que me pincelasse a voz com asas, para poder cantar um fado alado que te mandaria entregar em casa dentro de uma caixa amarela que chegaria às tuas mãos a cheirar a orvalho, com o primeiro raio de sol da manhã. Seria a sorrir que pensarias em mim, e quem por ali passasse poderia ouvir-te um sussurro carinhoso em que deixarias escapar “a minha estrela”. No meio dos teus aplausos, atirar-me-ias flores, nada de rosas, que sabes que não aprecio, mas daquelas flores inteiras e sem manias. E de mão na anca e xaile nos ombros, desfazer-me-ia em vénias sorridentes, com as pestanas a piscar e o coração a saltitar. Ririas muito, chamar-me ias “tonta” e eu largaria então um thank you, armada aos cucos. E como nunca mais me quererias deixar ir, e eu não mais quereria deixar-te ficar, seria ainda com a cabeça nas nuvens que teria de agradecer ao anjo e voltar para o outro lado do sonho, o outro lado do espelho da Alice, a correr atrás de um coelho branco para cansada voltar a dormir o sono dos justos. Seria serena e reconfortada por um dream of fire, que de coração quente te relembraria assim, com carinho e nostalgia, para voltar então a acordar saudosa quando o sol espreitar de novo.




* Douro.


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